terça-feira , 3 dezembro 2024
    Saúde

    Bets e jogos de azar: quando apostar pode se tornar um vício?

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    As casas de aposta online, mais conhecidas como “bets”, e os jogos de azar virtuais têm ganhado popularidade nos últimos anos. Segundo uma pesquisa feita pelo Instituto Datafolha, em 2023, 15% dos brasileiros já realizaram algum tipo de aposta online. Desses, a maioria é jovens de 16 a 24 anos. O cenário causa preocupações de especialistas da área da saúde já que esses jogos são de fácil acesso e podem levar à dependência.

    Segundo Rodrigo Machado, psiquiatra do Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP), todo e qualquer prazer vivenciado na vida – como comer, beber, fazer sexo ou realizar uma compra – estimula direta ou indiretamente o sistema de recompensa cerebral.

    “Esse sistema vai processar prazeres mundanos, ou seja, do nosso cotidiano, mas também prazeres como substâncias químicas”, explica. “Mas nós não ficamos dependentes somente dessas drogas. Também podemos desenvolver as chamadas dependências comportamentais. Em outras palavras, alguns comportamentos geradores de prazer para os seres humanos são mais sedutores para esse sistema de recompensa do que outros, podendo gerar, então, uma modificação no funcionamento desse circuito e, consequentemente, levar ao adoecimento”, afirma.

    Apostar é um desses comportamentos viciantes, segundo o especialista. “Esse é um comportamento altamente sedutor e recrutador de ativação desse sistema de recompensa cerebral e a exposição reiterada a esse comportamento vai modificando o funcionamento desse circuito em algumas pessoas que têm vulnerabilidade e essa modificação é o que determina a dependência”, acrescenta Machado.

    A psicóloga e psicanalista Ana Volpe, membro-filiada da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, explica, ainda, que a participação em apostas esportivas, cassinos online e jogos de caça-níqueis (como o “jogo do tigrinho”), libera dopamina no cérebro, neurotransmissor associado à motivação e ao prazer. Essa liberação gera uma sensação de euforia, incentivando o apostador a repetição do comportamento.

    “O cérebro, com o tempo, se adapta a essa liberação constante de dopamina e faz com que aquela pessoa precise de experiências cada vez mais intensas para sentir o mesmo nível de satisfação de antes, a chamada tolerância”, afirma.

    Nesse ponto, o apostador se torna cada vez mais ávido para obter novas levas de prazer fornecidas pelas apostas. Com o tempo, será preciso apostar quantias cada vez maiores, ou praticar cada vez mais apostas, para obter a mesma quantidade de prazer.

    O vício em jogos é uma doença reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e é chamada de ludopatia. No Brasil, é reconhecida pelos CID 10-Z72.6 (mania de jogo e apostas) e 10-F63.0 (jogo patológico).

    Acesso facilitado pode aumentar risco de vício

    Plataformas e casas de apostas foram proibidas por décadas no Brasil. Em 2018, a legislação brasileira passou a liberar a atuação de apostas esportivas no país, o que aumentou a presença de bets virtuais. Em 2023, foi aprovada a lei que regulamenta o mercado de apostas virtuais.

    Com isso, o que antes era físico e exigia deslocamento até uma casa de aposta ou cassino para que uma pessoa jogasse ou apostasse, agora pode ser acessado pelo smartphone.

    “Houve uma disseminação e uma difusão, e esses jogos eletrônicos e as apostas começaram a incorporar elementos estéticos, modais, advindos, por exemplo, dos games tradicionais”, observa Machado. “As cores e a forma como ele é apresentado, por exemplo, visa atingir uma população mais jovem”, acrescenta.

    Tudo isso facilitou o acesso às bets e aos jogos de azar. “Sem dúvida nenhuma, a facilidade de acesso é o maior agravante [para o vício]. Qualquer pessoa, de qualquer idade, em qualquer condição, consegue baixar um joguinho no celular”, afirma Volpe. “O impulso de jogar a qualquer momento, sem a necessidade de sair de casa, é constante em pessoas que possuem tendência ao vício”, completa.

    A natureza anônima das apostas online também pode encorajar comportamentos de risco, segundo a psicóloga. Além disso, no ambiente online, o isolamento social pode se intensificar, resultando em um ciclo vicioso de solidão e dependência, na visão da especialista.

    Atualmente, tramita no Senado o Projeto de Lei nº 2234/2022, que visa autorizar o funcionamento de bingos, cassinos e jogo do bicho, e permite apostas em corridas de cavalo.

    “A regulamentação pode criar uma falsa sensação de segurança e controle. As pessoas podem pensar que, por ser legalizado, o jogo é inofensivo, ignorando os riscos associados à dependência e suas consequências”, aponta Volpe. “O acesso facilitado pode intensificar comportamentos de risco, especialmente em um contexto social que já enfrenta desafios como estresse econômico e desigualdade”, completa.

    “Isso está sempre sendo discutido adequadamente com os setores responsáveis da saúde para desenvolver mecanismos para minimizar o adoecimento [da população]”, afirma Machado.

    Como identificar sinais de vício?

    De acordo com Machado, existem alguns fatores que podem ser associados ao maior risco de dependência em apostas. Além da exposição recorrente a esse tipo de comportamento, existem fatores de risco como histórico familiar de dependências em geral, exposição precoce às apostas (na infância ou na adolescência, por exemplo) e nível socioeconômico e educacional mais baixo. Homens também tendem a ser mais vulneráveis para vícios do que as mulheres, segundo o psiquiatra.

    Mas para que um vício seja identificado, é preciso notar alguns elementos e sinais de alerta. Um deles é a percepção de perda de controle. “Ou seja, o indivíduo planejava fazer só uma aposta e, de repente, gastou tudo o que tinha porque fez várias”, exemplifica Machado.

    Outro ponto importante é o prejuízo funcional. Isso significa que as apostas passam a interferir na vida de alguma forma, seja na esfera acadêmica, na profissional ou na família. “Ele pode começar a atrasar no trabalho ou o rendimento cai porque está fazendo apostas”, cita. “O prejuízo funcional mais óbvio é o das dívidas, por envolver dinheiro, então, o endividamento é o prejuízo funcional mais facilmente identificado e famílias são comprometidas”, acrescenta.

    Outros sinais de alerta podem incluir:

    • Ansiedade, depressão e baixa autoestima;
    • Sentimento de culpa e de vergonha;
    • Isolamento social;
    • Dificuldade de parar com as apostas;
    • Obsessão por recuperar o que foi perdido com as apostas.

    Como é feito o tratamento?

    Assim como outros tipos de dependência, o vício em jogos de azar e em apostas deve ser tratado e o paciente pode ser recuperado. “Recuperação do vício em jogos de azar e apostas exige dedicação e apoio, mas é possível com as estratégias certas”, afirma Volpe.

    O primeiro passo é reconhecer o problema e entender como ele afeta a vida do apostador e das pessoas ao redor. O reconhecimento, segundo a psicóloga, deve ser seguido de uma avaliação dos impactos negativos, como danos à saúde mental e financeira.

    Em seguida, é fundamental buscar ajuda profissional, que pode acontecer através de psicólogos, psiquiatras, terapias específicas ou grupos de apoio. “Além disso, é crucial identificar e evitar gatilhos que possam estimular o comportamento de aposta, ao mesmo tempo em que se desenvolvem hábitos mais saudáveis e se constrói uma rede de apoio para manter o foco na recuperação”, afirma Volpe.

    O tratamento para esse tipo de vício também exige a colaboração da família para formar uma rede de apoio. Grupos formados pelos próprios apostadores em tratamento também podem ajudar. “Assim como os ‘narcóticos’ e ‘alcoólatras anônimos’, existe o ‘jogadores anônimos’, que são grupos que funcionam. A ciência já mostrou que esse tipo de abordagem funciona e traz resultado”, afirma Machado.

    Além disso, profissionais que fazem aconselhamento financeiro também podem fazer parte do processo de recuperação do jogador. “Eles ajudam esses pacientes a se reestruturarem financeiramente, a sanar as dívidas e a negociarem com os bancos. Então, é uma equipe trabalhando em conjunto”, completa.

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