segunda-feira , 14 outubro 2024
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    David Luiz reflete sobre vida e carreira: “O melhor lugar do mundo é no sofá de casa”

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    Atleta respeitado no mundo da bola, com passagens por grandes times europeus, Seleção Brasileira e hoje um dos mais experientes do Flamengo. David Luiz já marcou seu nome no futebol, mas a caminhada até o sucesso foi dura.

    Em um texto publicado nesta sexta-feira (30) pelo The Players Tribune, o zagueiro de 37 anos relembrou momentos de derrotas e vitórias na carreira, histórias curiosas e também fez questão de destacar os valores aprendidos dentro de casa.

    Com o título “Ninguém abraça sozinho”, o texto é dividido em momentos da infância de David Luiz, o início no futebol e a importância do esporte em sua vida.

    David Luiz passou pelo São Paulo na juventude, começou no Vitória e depois rumou para a Europa, onde defendeu Benfica, Chelsea, Paris Saint-Germain e Arsenal, antes de retornar ao Brasil e fechar com o Flamengo, em 2021.

    Confira a carta na íntegra

    Vocês devem ter ouvido falar muito de mim nos últimos dias. Aposto que sim. Mas acho que continuam sabendo pouco de mim. Porque eu não sou só um dia, eu não sou só uma partida, eu não sou só um jogador, só um gol… Eu não sou o cara que as pessoas que falam muito de mim, quase sempre de um jeito superficial, querem que eu seja.

    Então é melhor eu contar de uma vez por todas quem eu sou.

    Com as minhas palavras. Sem firula.

    Bom, eu sou filho de dois professores brasileiros. E quem quiser me conhecer de verdade vai precisar entender o significado disso em nosso país. Os meus valores, meus princípios, meus sonhos, as minhas ideias, a maneira como eu enxergo a vida e procuro atuar nela, de forma positiva, tudo vem daí. Não tem um dia que eu não me sinta grato e honrado de ter vindo de onde eu vim e da formação que eu recebi.

    A minha família morava de aluguel num apartamento pequenininho em Diadema, na Grande São Paulo, e meus pais trabalhavam das sete da manhã às onze da noite. Por isso, desde os sete anos eu sempre lavei minhas próprias roupas. Eu sei que roupa branca a gente deixa de molho antes de ligar a lavadora e que não pode exagerar no amaciante. Mas, pra desespero da minha mãe, eu sempre exagerava, porque eu queria que as minhas camisas suadas do futebol ficassem perfumadas. Aos 11, eu fui estudar no período noturno pra conseguir treinar no São Paulo. Era longe, viu? Três ônibus pra ir e três pra voltar. Aos finais de semana, eu lia artigos de jornal que meu pai separava pra mim e depois me enchia de perguntas:

    O que você entendeu?

    Qual a sua opinião?

    Como dá pra aplicar isso na sua vida?

    Crescer com pai, mãe e uma irmã presentes, me protegendo, me dando carinho, me mostrando os caminhos do mundo foi um privilégio, eu sei. Sou fruto disso. Tive a oportunidade de viver com pouco na infância e na adolescência e também de viver com tudo graças ao meu trabalho, que me permitiu conhecer países, culturas e pessoas diferentes.

    Nas caminhadas pela periferia e pelos castelos do futebol, vivi coisas que estavam fora de mim. Nem todas eram boas. Mas nunca deixei desvanecer o que sempre esteve dentro, que é essa vontade de refletir, aprender, querer entender e, principalmente, não me conformar diante de coisas como: “Ah, isso é assim mesmo, não tem como mudar”. Como não, pô?! Tem sim!

    Dia desses eu fui buscar minhas filhas na escola e um outro pai falou uma gracinha ofensiva por causa do jogo que nós tínhamos perdido na véspera. A minha primeira reação foi fingir que não ouvi. Deixar quieto e voltar logo pra casa com as meninas. Mas não. Esse não seria eu. Eu sou o cara que tenta não se omitir quando pinta uma chance de mudar certas coisas ruins. O futebol proporciona muitas dessas oportunidades pra gente. Então eu chamei o cara e fiz perguntas:

    — Chega aí, vamos conversar. Ontem, eu perdi o jogo, beleza. E você perdeu o quê? Faz ideia? E onde você ganhou? Porque todo dia a gente ganha e perde. Isso que a gente tá fazendo neste momento, pegando nossas filhas no colégio, é vitória ou derrota? Pra mim é um golaço. E pra você?

    O futebol é um troço especial porque possibilita esse tipo de conexão entre as pessoas e, de tudo o que existe no mundo, as pessoas são o que mais importa.

    Casa tem preço, carro tem preço, colégio particular tem preço. Mas valor quem tem são as pessoas e o que elas fazem. Nessa conexão que o futebol proporciona, de repente surge uma palavra capaz de virar do avesso as nossas percepções sobre a vida. Então, eu, que estou dentro do campo, não posso ficar satisfeito só em ajudar as pessoas a celebrarem quando o time vence. Eu também consigo mostrar algumas coisas importantes que vêm com a derrota.

    Muitas vezes, o torcedor derrotado não está frustrado com o time, ou comigo. A frustração nem tem a ver com o futebol. Ela já está nele, na vida dele e aí, no futebol, ele extravasa: é a válvula de escape praquele monte de frustração que a gente é obrigado a experimentar nesse sistema que não divide, não ajuda, não explica, mais tira do que oferece, transforma tudo em preço, não em valor, e faz as pessoas se sentirem miseráveis porque não podem pagar.

    Vê só. Eu não estou julgando ninguém. Eu estou contando as minhas experiências pessoais: como eu me formei como ser humano, como atleta, como um cara que está no mundo e age nele pra transformá-lo. E é claro que eu não nasci com essa consciência que eu tenho hoje. Embora tenha feito diferença a minha base familiar, isso eu só tomei como meu, como uma parte fundamental de mim, conforme fui amadurecendo.

    Na adolescência eu tive meus dias bem sem-noção. Quem nunca? Uma vez, eu tinha acabado de entrar no São Paulo, dei uma dessas. Mas foi um aprendizado. E quando aprendo algo importante eu gosto de marcar. Vou contar pra vocês. Cheguei no São Paulo com a minha chuteirinha falsificada de camelô e os moleques lá todos de Nike, Adidas e tal. Num fim de semana eu vou dormir na casa de um amigo do time e a mãe dele leva a gente no shopping pra comprar uma chuteira nova pra ele. Uma Nike prateada top de linha. Tinha a bronze que o Ronaldinho e o Denílson usavam, e a prata. Ele quis a prata. Seiscentos reais, na época. Eu só olhando, babando. Aí pedi o celular da mãe do meu amigo, fui fora da loja, dei um migué de que tinha ligado pra casa e voltei:

    — Beleza, tia. Minha mãe deixou. Ela falou que a senhora pode comprar uma chuteira igual pra mim e quando chegar a fatura do cartão ela paga.

    Eu não sei se a minha mãe ficou mais decepcionada com a mentira ou com o fato de eu ter derrapado num momento em que fui colocado à prova. Porque eu sabia que uma chuteira não me faria jogar melhor nem pior. E também sabia que a minha família não podia arcar com uma despesa daquele tamanho. Mas ali eu fui o que a sociedade esperava e espera da gente: “Seja igual, não seja você mesmo. Copie os outros, queira ser quem você não é, porque isso é assim mesmo, não muda”.

    Com as redes sociais isso ficou mais evidente. E talvez por isso as pessoas estejam cada vez mais ansiosas e deprimidas. A gente está trabalhando 15 horas por dia em vez de oito. Faz as refeições falando com o chefe no zap, toma banho cronometrado, tem dia certo pra contar historinha pro filho na hora de dormir. A gente é obrigado a acelerar tanto pra se encaixar, pra ser igual, mas tanto, que nem consegue mais olhar a paisagem. É complicado “viver” assim. E mais complicado é ousar querer ser diferente: precisa ter a força e a noção de que você vai apanhar mais do que bater, mas no fim vai sair vencedor com você mesmo, tipo filme de boxe.

    A minha mãe precisou fazer muitas horas extras pra pagar aquela chuteira. Tempos depois, olha como é a vida, né?, eu fui patrocinado pela Nike. Peguei com os caras uma chuteira prateada, botei numa moldura e até hoje a minha mãe tem ela pendurada na parede do quarto. Foi a forma que eu encontrei de agradecer: mostrar que eu aprendi a lição e que nunca teria vivido o que eu vivo até hoje se não fossem eles, os meus pais. A chuteira prateada no quadro é uma lembrança e uma forma de honrar a jornada particular da nossa família.

    Outra recordação nesse sentido é o meu apartamento em Lisboa. O primeiro que eu comprei depois de ter conseguido dar uma casa para os meus pais. Eu jogava no Benfica, tinha assinado o meu primeiro contrato bom e entrei num financiamento pra comprar esse apartamentinho em Lisboa. Eu mesmo mobiliei, instalei o papel de parede, que ficou cheio de bolhas, comprei cortina baratinha, sofá-cama, fiz tudo sozinho. E até hoje eu pago as prestações do financiamento. Não quis quitar, porque o processo completo é parte da conquista, do significado. O apê continua lá do mesmo jeito. Não vendo e não alugo. Empresto pros amigos.

    Esse primeiro contrato bom com o Benfica, aliás, que me consolidou como jogador profissional, foi uma saga. Dava um filme. Acabei indo parar lá porque o clube devia uma grana pro meu empresário e aí, pra saldar a dívida, eles ficaram comigo: um moleque que jogava na terceira divisão brasileira por um time da Bahia, o Vitória, e desembarcou lá de regata em pleno inverno. Mas deixa eu voltar um pouco mais no tempo.

    Depois de alguns anos no São Paulo, um dia me mandaram embora dizendo que eu não ia crescer e por isso não vingaria como jogador. Fui pro América Mineiro, que na época tinha uma estrutura que deixava a desejar.

    Não posso dizer que passei fome lá, mas cheguei a ficar três dias sem comer. No café da manhã, eram 40 pães para 150 meninos. No almoço, uma caneca de feijão batido. No jantar, outra. A gente rodava as matas perto do alojamento pra pegar abacate e completar a dieta. Aguentei três meses e fugi.

    Voltei pra Diadema e um amigo que tinha ido pro Vitória me falou: “David, estão precisando de meia aqui”. Eu ainda era meia-esquerda e fui. Mas por meses só treinei entre os reservas e, no máximo, pegava banco. Nunca jogava. Eu queria jogar! Um dia os dois zagueiros titulares se machucaram e decidi arriscar. Pedi pra treinar na zaga. “Tá maluco, garoto?!”, perguntou meu treinador. Ele acabou deixando, porque não aguentava mais a minha insistência. Terminei a temporada como o melhor zagueiro do campeonato que estávamos disputando.

    Meses depois o meu empresário, sei lá como, conseguiu que um pessoal do Anderlecht, da Bélgica, viesse me assistir.

    “Praticamente vendido, David. Vai arrumando tuas malas”, ele me dizia.

    O ano era 2006. Os belgas foram me ver num dos últimos jogos da terceira divisão daquele ano. A gente já estava com a vaga na Série B garantida e ia enfrentar o Criciúma fora de casa. Presidente, treinador, diretor e não sei mais quem, cinco belgas no total desembarcaram em São Paulo e foram de ônibus até o interior de Santa Catarina. Uma chuva danada. Começa o jogo, dez minutos, 1 a 0 Criciúma. No intervalo, 3 a 0. Aos 70 minutos, 6 a 0. Os belgas viraram as costas e foram embora, ensopados. Nem disseram nada.

    De praticamente vendido eu tinha sido totalmente reprovado. Hoje fico só imaginando o que eu estaria contando aqui se tivesse ido pro Anderlecht…

    Continuei no Vitória e tive uma pubalgia bem séria. Estava sem jogar, porque mal conseguia andar, e o meu empresário liga de novo. “David, tá com seu passaporte aí?” Eu não fazia ideia, mas respondi “Sim, tá na secretaria do clube”. Devia estar, né? Em Salvador eu não usava nem camiseta… ia saber de passaporte? Claro que não estava comigo nem na secretaria do clube. Estava em Diadema, fui descobrir depois.

    Naquela mesma noite, eu deveria voar de Salvador pra São Paulo e depois pra Lisboa. Faria exames médicos e assinaria contrato com o Benfica na manhã seguinte. Mas nessa de procurar o passaporte, perdemos o voo pra São Paulo, eu e o funcionário que meu empresário tinha mandado pra me ajudar na viagem. Aí bate o desespero total. O voo São Paulo-Lisboa partia às dez e meia da noite. Meu empresário alucinado, maluco, puto da vida. Oito horas e a gente em Salvador ainda, que nem barata tonta.

    E agora? Faz o quê?

    “Peraí, vou dar um jeito”, diz o empresário.

    O jeito dele foi pedir emprestado o jatinho da Ivete Sangalo pra nos levar até São Paulo, deixar tudo no esquema pra fazer o check-in na pista e subir no avião pra Lisboa. Ele conhecia a Ivete e ela liberou o jatinho. Vai vendo…

    Quando eu entrei, o piloto deve ter percebido a minha cara de desespero e falou: “Se preocupe não, meu rei. Comigo, Ivete nunca perdeu um show. Nós vamos chegar no horário. Se preocupe, não”. Falei baixinho pra ele não ouvir: “Nunca perdeu, mas bem que ela atrasa, né?” Hahah… Mas vambora!

    Pousamos em São Paulo, um motoboy tinha ido buscar meu passaporte em Diadema, estava tudo certo, vamos nessa!

    A moça da companhia aérea pega os documentos, os bilhetes e diz: “Só tem um problema, senhores. O avião de vocês era aquele ali”. E aponta o bichão decolando. Eu falei que parecia filme… No fim, acho que deu tudo errado pra que desse tudo certo.

    Na manhã seguinte, eu chego no escritório do empresário, no Itaim, ele me passa o telefone. Era o presidente do Benfica:

    — Ora, pois. Tu existes! Afinal existes. Podes jogar já no final de semana?

    — Posso, presidente.

    Por causa da pubalgia eu mal consegui andar. Doía tudo.

    Ele continua:

    — Esqueci de saber como tá tua parte física. Estás lesionado?

    — Não, presidente. Estou ótimo.

    — Que bom. Então te espero cá amanhã.

    Cheguei em Lisboa e fui direto pro clube. Assinei um contrato de seis meses antes de fazer os exames. Quando os médicos descobrem a pubalgia, chamam fisioterapeuta, diretor e preparador físico. Eu na salinha ao lado só ouvindo a conversa. Um deles diz assim: “Como a gente vai fazer esse puto treinar? Ele já assinou contrato. É do Benfica agora”. O outro responde: “Ele tem que chegar todos os dias três horas antes, tratar com a gente, treinar e ficar três horas depois”. E o terceiro completa: “Tudo bem. Mas o presidente e o treinador não podem saber”.

    Foi desse jeito que eu entrei no futebol europeu. Hoje eu dou risada, mas foi bem complicado.

    No elenco nomes como Nuno Gomes, Simão Sabrosa, Luisão e cia. O treinador do Benfica era o Fernando Santos, que depois ganharia a Euro com a seleção portuguesa. Ele me olhava no treino e berrava: “Esse é o jogador brasileiro que nos empurraram, ó pá?! Tem que voltar pra Copacabana, porque é muito ruim”. Só me xingava e eu não conseguia fazer nada por causa da dor. Dominava a bola, os caras roubavam. Ia correr, caía. Tinha tudo pra ser um fiasco. Mas a pubalgia foi melhorando com aquelas seis horas diárias de tratamento e eu também. Mesmo assim, era raro eu ser relacionado para uma partida. Quando rolava, eu ligava pra avisar meus pais: “Vou ficar no banco domingo, pessoal. Vejam pela TV, quem sabe eu apareço no cantinho da tela”.

    Um dia, duelo em Paris contra o PSG pela Liga Europa, meu nome tá na lista de quem ia viajar, porque não tinha zagueiro suficiente em condição de jogo. Foi a primeira vez que eu vesti um terno na vida e estava contente só de ver a Torre Eiffel. Se jogasse cinco minutinhos seria a glória. Durante a partida, o Luisão, meu parceiro, zagueiro titular, capitão e praticamente dono do time, sente uma lesão que ele vinha tratando. Quem costumava entrar no lugar dele não era eu. Era um volante grego, só que naquela tarde o cara teve um piriri e ficou no hotel. Aí, 35 minutos do primeiro tempo, a gente vencendo por 1 a 0, sai o Luisão contundido. O Fernando Santos olha pro banco e só tem eu pra posição. Ele faz aquela cara de derrota: “Ah, vai você mesmo”.

    Eu entro no jogo e foram dez minutos trágicos. Primeiro lance meu, os caras cruzam na área, eu tiro o pé, a bola bate no chão e entra: 1 a 1. Passam só dois minutos, eles vêm pra cima de mim, me driblam e viram: 2 a 1. Caído no chão, eu penso com meus botões: “É, David. O sonho acabou. Amanhã os caras vão te mandar embora”. Eu me sentia dentro de um liquidificador.

    Saímos pro intervalo e, quando eu entro no vestiário, todo mundo olha pra mim. Uns com raiva, outros com pena. O Fernando Santos me chama de canto e pergunta: “Quer que eu te tire?” Ele é um dos que sentem pena de mim.

    Esse é o momento-chave da minha carreira.

    Tem outros, mas esse foi decisivo demais. Por incrível que pareça, não me passa pela cabeça responder: “Sim, mister, melhor o senhor me tirar”. Eu me senti leve, até. Já estava morto, um tiro a mais, um a menos, o que eu tinha a perder? Então eu digo: “Não, não, não. Quero voltar pro segundo tempo”.

    Nesse momento, ainda no vestiário, vou pra dentro do banheiro e sozinho eu faço uma oração e só peço tranquilidade, pois personalidade eu saberia que teria.

    Eu volto, a gente perde o jogo por 2 a 1, mas sou eleito o melhor em campo. No retorno pra Portugal, a gente enfrenta o Leiria em casa, ganha por 2 a 0, eu sou eleito de novo o melhor em campo e não saio mais do time. Eu tinha caído nas graças da torcida, do treinador, dos meus companheiros, do presidente e dos jornalistas. A dupla de zaga titular do Benfica passa a ser Luisão e eu.

    Mas meu contrato era só de seis meses, lembram?

    Faltando um mês pra terminar, chegam duas propostas. Vamos dizer que eu ganhava 2 mil naquela altura. A primeira proposta era do próprio Benfica: contrato de 5 anos pra ganhar 5 mil. A segunda é do Porto: contrato de 5 anos pra ganhar 100 mil.

    Minha família ainda no apartamentinho alugado em Diadema, meus pais dando aula de manhã, de tarde e de noite.

    Eu, angustiado.

    Liguei pro meu pai pra pedir uma luz. Contei das duas propostas e ele nem titubeou: “Assina com o Benfica agora. Eles te deram a oportunidade mesmo quando você estava machucado. Fizeram de tudo pra você aproveitar a chance da sua vida. Não se cospe no prato que come. É com o Benfica que você tem que assinar”.

    Eu sabia que meu pai diria isso. Sabia, principalmente, que numa hora dessas de dúvida, entre ajudar a família o mais rápido possível ou esperar um pouco, era dele que viria a palavra correta. A palavra que mais uma vez me aproximaria da minha essência em vez de me afastar, que me faria crescer, refletir, aprender, medir as consequências dos meus atos e ficar em paz com a decisão. Porque a gente já tinha vivido juntos um momento parecido anos antes.

    Mesmo jogando na base do São Paulo, eu fazia um bico na várzea pelo Engenheiros de Pirituba quando dava. Escondido do São Paulo, claro. Devia ter uns 11, 12 anos.

    Até que numa partida pelo Engenheiros eu quebrei o braço. Isso foi no sábado à tarde e no domingo de manhã eu tinha uma final com o São Paulo, contra o Santos. Quando cheguei em casa com o braço todo torto, pendurado, inchado, meu pai me encheu de perguntas:

    Você está disposto a superar a dor pra honrar seu compromisso?

    Que lição você tira do que aconteceu?

    E amanhã, vai fazer o quê?

    — Vou suportar a dor e vou cumprir meu compromisso com o São Paulo.

    — Então tá bom. Eu te ajudo.

    Passei a noite inteira fazendo compressa de gelo, bolsa de água quente, água fria, contraste, faixa, até gesso meu pai botou no meu braço.

    Na manhã seguinte, ele cortou o gesso e eu fui pro jogo. Perdemos a final, lembro de finalmente ir pro hospital, ainda com o uniforme do jogo, e que me doía mais o arrependimento pelo erro do que o braço ou a derrota. Esse episódio é muito marcante na minha vida, em termos de superação, suportar a dor, disciplina. Muitas pessoas dirão que eu fui irresponsável. Pode ser. Mas foi bem mais do que isso. Aquela situação me fez crescer em determinação e me deixou clara uma lição que nunca esqueci: nenhuma dor é maior que um sonho.

    Quase 15 anos depois, quando eu joguei uma final de Champions com uma ruptura muscular de oito centímetros no músculo da coxa, era nisso que eu pensava. Talvez eu só tenha entrado em campo nessa final por conta desse episódio aos 12 anos e de muitos outros de saber suportar a dor.

    Também daria um filme aquela decisão de 2012 pelo Chelsea, contra o Bayern, em Munique.

    Meu processo pra conseguir jogar teve de tudo. Desde preparação mental pra aceitar a dor a ver horas e horas de vídeo do Mario Gómez, do Robben e do Ribéry, os atacantes do Bayern, pra entender como, nas condições físicas que eu estava, eu poderia pará-los. Depois, eu tinha que fazer o médico aceitar, o preparador físico aceitar, o treinador aceitar e o dono do clube aceitar. Vencer a Champions era a maior ambição do Chelsea. Era um título inédito pro clube, que, quatro anos antes, tinha perdido uma final pro Manchester United.

    Na véspera da partida, a gente fez um treino leve e cada bola que eu chutava era uma facada na minha perna. Eu corria e sentia a lágrima descendo pela minha cara. Mas aguentando. No fim do treino, vou dar uma caminhadinha com o preparador físico e a gente conversa:

    — Não vai dar, David. Você não tem condições. Com esse tipo de lesão você não deveria nem andar.

    — Vai dar sim, pô! Tem que dar!

    O Terry com cartão vermelho. Ivanovich suspenso. Eu lesionado. Nosso elenco era curto e só sobrava o Cahill de zagueiro. Então eu tinha que jogar. Por isso e por mais uma coisa, que falei pro preparador físico:

    — Escuta, cara, existem uns 200 milhões de brasileiros no mundo. Amanhã, eu vou ser o único mais ou menos apto a disputar uma final de Champions League. Do nosso lado, o Ramires tá suspenso. Do lado deles, Luiz Gustavo. Rafinha estará no banco. Sou só eu pra representar meu país. Você não pode me tirar desse jogo. Você não faz ideia o que eu e minha família fizemos pra eu estar aqui. Então você vai lá e diz pro treinador que eu posso jogar. E pode dizer também que eu falei que a gente vai ser campeão.

    E fomos.

    O Bayern massacrou a gente o jogo inteiro, mas nós ganhamos nos pênaltis. Até eu bati um. Bati e marquei. Um dos maiores títulos e outro momento muito marcante na minha vida. A gente festejou a noite inteira em Munique, depois voltou pra Londres, festejou a tarde toda, desfile nas ruas e só à noite, quando tudo acabou, eu fui lembrar da dor. Olhei a parte de trás da coxa e tinha um hematoma horrível, enorme, na lesão. Era uma ruptura total do músculo. Foi assim que eu joguei.

    O futebol me proporcionou diversos momentos grandiosos como aquela conquista de Champions com o Chelsea. Mas acho que nada me deixou tão feliz, completo e agradecido à vida do que uma “loucura” que aprontei quando jogava no PSG.

    Depois de uns meses que eu me mudei pra Paris, dois amigos meus de Diadema foram passar uns tempos comigo lá. Eles tinham terminado namoro, casamento, estavam tristes e eu os chamei pra dar uma força, ver se eles conseguiam espairecer. Beleza.

    Logo eles conheceram outros brasileiros que jogavam num time, sei lá, da sétima divisão amadora do subúrbio de Paris. Tudo imigrante com documentação irregular.

    Toda noite os meus dois amigos chegavam em casa bravos, reclamando que só tomavam goleada. Aí eu falei: “Amanhã vou lá ver o jogo de vocês”. E fui mesmo.

    Cheguei de toca ninja, meio disfarçado e fiquei assistindo. O adversário arrumadinho, com uniforme certinho, material, garrafinhas de água, treinador. E o time dos meus amigos sem nada: um de calção branco, outro roxo, amarelo. Os caras se pendurando na trave pra aquecer… Uma bagunça.

    Quando acabou o jogo, que eles perderam, eu perguntei:

    — Querem que eu treine vocês?

    Eu nunca vou esquecer do sorriso dos caras. Eles ficaram numa alegria tão genuína, uma empolgação tão verdadeira, uma coisa que eu só tinha visto na infância quando a gente empinava pipa em Diadema.

    Comecei a treinar os caras toda segunda-feira, das dez à meia-noite. Às vezes, eu dava o treino na segunda e na terça jogava uma partida de Champions. Lembro até de ter marcado um gol contra o Barcelona numas dessas. Passei a adorar as segundas-feiras. Não via a hora de estar com aqueles caras. A gente conversava, eu ouvia bastante, fui conhecendo as histórias e os corres de cada um.

    Uns levantavam uma grana jogando capoeira, outros com entrega de moto, lavando prato. Todos numa vida difícil, com medo por causa da situação ilegal, meio sem esperança de que melhorasse, mas com o futebol iluminando e tirando o peso dos dias.

    Nas minhas primeiras férias, voltei pro Brasil e fui falar com a maluca maior, que é a minha mãe:

    — Mãe, dá pra fazer material pros meninos lá?

    Exagerada, ela fez polo de viagem, agasalho, uniforme de jogo, uniforme de treino, tudo, tudo, tudo, tamanhos P, M, G, GG…

    Voltei pra Paris com 21 malas. A dedicação dos caras cresceu junto com a alegria deles. Passamos a treinar duas vezes por semana, depois três. Subimos de divisão e, no fim da temporada, eu tive uma ideia doida. Mais uma. “Vou fazer um baile de gala pro time, igual o PSG faz todo ano pra gente.” Aluguei tipo um castelo-casa noturna onde o Matuidi tinha feito uma festa de aniversário dele e comecei a produção da nossa.

    Eu já tinha contratado um menino que filmava pro PSG pra ele filmar os jogos da rapaziada também. Aí pedi pra ele trazer todos os vídeos na minha casa pra gente assistir e escolher os gols mais bonitos do ano, o artilheiro, as melhores defesas do goleiro. Vamos exibir no telão! Depois encomendei troféus pros vencedores de cada categoria. Pô, mas e os outros? Placas! Vamos fazer plaquinhas de madeira e acrílico com o nome de cada um. Tudo nos trinques. Na véspera, chamei a galera:

    — Vocês têm camisa branca e um blazerzinho preto pra festa amanhã?

    Ninguém tinha. Tá, deixa que eu compro.

    Eu mesmo fui na loja e providenciei. Aí lembrei das namoradas e das esposas. Chamei a turma de novo e dei um pouco de dinheiro pra cada um, pra que as companheiras comprassem um vestido, se elas quisessem.

    Chega a noite da festa.

    Se eu disser que foi incrível, uma das maiores emoções da minha vida, tão legal quanto ser campeão da Champions, vocês vão acreditar?

    Pista de dança, jantar, tapete vermelho, backdrop pra dar entrevista… Eu olhava a felicidade dos caras e das famílias deles e tudo parecia fazer sentido pra mim. Uma sensação boa de alegria verdadeira, de que cada um ali, inclusive eu, estava livre e confortável pra ser diferente, pra ser ele mesmo. A gente tinha criado algo sensacional, que não deveria ser raro pra ninguém: a oportunidade de se sentir parte de algo, de pertencer. A gente estava vivendo de verdade. No final da noite, o dono do castelo, que tinha assistido a tudo de uma mesinha de canto, me chamou e falou:

    — David, eu não vou cobrar pelo aluguel do espaço. De alguma forma, eu também quero fazer parte disso. Então é a minha contribuição.

    Foi uma temporada inesquecível e eu sempre serei grato àqueles caras. Eles não teriam vivido tudo isso sem a minha ajuda?

    Talvez.

    Mas certamente eu jamais teria passado momentos tão gratificantes sem eles. Foi uma troca bonita. Queria até aproveitar pra deixar esse exemplo pros gestores de empresa que gostam de falar de produtividade, comprometimento, dar o sangue, vestir a camisa, mas só olham os funcionários de cima pra baixo.

    Caras, as pessoas gostam de se sentir parte, serem valorizadas de verdade, gostam de saber que podem contar com alguém quando precisarem. Todo mundo depende de todo mundo e todo mundo gosta de ser abraçado. E abraço ninguém dá sozinho. Então, não adianta só cobrar e fazer discurso. Tem que mostrar, pôr em prática.

    Solidariedade, oportunidade, boa remuneração, porque é o salário justo que dignifica o homem, não o trabalho. Gente feliz trabalha melhor porque vive melhor. É bem simples. E a felicidade mora na simplicidade.

    Essa é a minha busca hoje. Uma busca pela simplicidade. Não estou falando de dinheiro. Estou falando de sentimentos. Algo que só entendi plenamente na época do Chelsea, ganhando títulos, fazendo gol da vitória, aquela coisa toda, 60 mil torcedores gritando meu nome, mas depois chegava em casa e eu não tinha ninguém para abraçar.

    A gente pode andar de jatinho, fazer festa em castelo, ter apartamento em Lisboa, conhecer vários países, mas o melhor lugar do mundo é o sofá da nossa casa. É onde não tem vírgula, não tem aspas, não tem sombra, não tem dúvidas.

    No sofá da nossa casa, ao lado das pessoas que a gente ama, tudo é verdadeiro. Não precisa de pé atrás, não precisa de interpretação, análises. Ali a gente tem tempo e espaço pra fazer o que mais importa: sentir e ser a gente mesmo, sabendo que, ao viver pelo outro, sempre haverá dois braços te esperando pra dar um abraço.

    Infelizmente, nessa nossa sociedade viciada em rede social, parece que as pessoas estão duvidando de que o simples é bom. Aí, pra dar algum sentido aos dias, se jogam na avalanche que arrasta tudo pro fundo do vale, onde todos são iguais, onde todos perdem mais tempo do que desfrutam dele e onde as pessoas têm preço, não valor.

    Acho que é isso aí… Escrevi pra caramba, né? Tomara que meus pais não sejam os únicos a ler. Mas este sou eu.

    Filho de dois professores que viveu de tudo um pouco com a bola no pé.

    Abração pra todo mundo, fiquem com Deus!

    David

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